Irresistível Audrey


O amor toma o espírito do ser humano e nele permanece sem dar conta ou pedir licença um instante que seja aos anos que se sucedem inexoravelmente. Nem mesmo as criaturas dão-se conta de sua presença ali instalada governando seus gestos muita vezes inexplicáveis para as pessoas que os cercam.
Audrey HepburnNuma semana de primavera após as férias escolares de Julho, o movimento das salas de cinema torna-se muito reduzido e devido a baixa frequência os exibidores tratam de preencher os horários com películas de pequeno custo e que não atraem muito público e que na sua opinião não tem a menor importância.
Creio que esta foi a razão para se apresentar um festival com os grandes sucessos de romances do cinema. Lá estava eu a comprar a entrada para a sessão da tarde; Haviam poucas pessoas realmente, fruto do esvaziamento das férias e do reinicio das aulas. Quem não gosta do cinema assim? Afinal não há a menor necessidade de repartir a diversão com centenas de pessoas, crianças barulhentas, cheiro de pipoca e estalos de goma de mascar.
Sair do silencio quase religioso da sala de espera e entrar na intimidade da sala de espetáculos. Sim, este é o nome -: sala de espetáculos. Uma sala onde se contam histórias. Onde se ri e se chora. Já havia assistido ao filme algumas vezes. Lembro que certa ocasião o mesmo foi passado no vídeo de um ônibus fretado que utilizei. Era a semana do dia dos Namorados. Curiosamente houve muitas vaias. Será que era esta a reação das pessoas ante uma narrativa que prescinde da violência e do sexo ? Não, espero.
Sentei-me bem a frente em uma fileira vazia, bem a vontade e anonimamente. Dali sou transportado para 1961 onde não sem uma viva emoção vejo mais uma vez Audrey Hepburn admirar a luxuosa vitrine da Tiffany´s depois de ter passado a noite em claro. Você Audrey, morando em Greenwich Village no coração hippie de Manhattan ensinando a tantas gerações o requinte do pretinho básico com aqueles gigantescos óculos de sol fazia qualquer pessoa acreditar que às 6 horas da manhã é possível mostrar o rosto sem um único fio de cabelo fora do lugar.
Coisas inesquecíveis como o telefone na gaveta para o desespero de Paul, a festa com centenas de pessoas no minúsculo apartamento que sempre lembro ao ouvir Sally´s tomatoes  e a elegância irrepreensível de Audrey não deixam um único momento da narrativa fora do lugar. Conduzidos na magia da música de Mancini aprendemos a gostar do gato sem nome. Apenas um momento na escada de madeira sentada nos degraus Audrey consegue encantar cantando Moon River e acompanhando-se ao violão.
Uma torcida imensa quando o escritor Paul Varjak consegue comprar um discador de telefones de prata por 10 dólares na Tiffany´s para Holly. Uma sombra de aflição percorre a todos nós quando se pensa que Holly abandonará Paul, embora todos saibamos que o amor sempre vence.
Sim, torcemos o tempo todo para que Holly seja feliz e tudo não poderia terminar de outra maneira. Sob uma chuva torrencial Holly e Paul se abraçam e beijam em frente a um beco. Sem nome se aconchega em meio a esse esperado abraço enquanto vejo as pessoas procurando seus lenços discretamente. Bonequinha de luxo, você é definitivamente a mulher dos sonhos.
Foi quando ainda na sala escura ouvi um grande alarido na platéia atrás de minha fileira onde pensava estar apenas na companhia de Audrey e Peppard. Um senhor alto e corpulento, gesticulando muito segurava um senhor idoso e de aspecto frágil e o conduzia praticamente arrastado em direção a saída. O senhor de cabelos brancos que se podia notar mesmo na fraca luminosidade segurava um óculos na mão e um lenço na outra murmurava alguma coisa mas o outro homem, provavelmente um funcionário com jeito de segurança não lhe dava ouvidos. No lugar ao lado onde estivera sentado duas moças muito jovens olhavam para a cena com expressão desdenhosa. As luzes estavam completamente acesas.
Deixei que passasse algum tempo até voltar ao mundo real. Minha curiosidade fora despertada pelo acontecimento incomum. Na saída na sala de espera, não tardei a saber do ocorrido. Algumas rodinhas de conversa falavam em voz alta de um velho inconveniente que tivera que ser posto para fora do cinema porque subitamente tomara as mãos da moça sentada ao seu lado, uma desconhecida e as beijara.
Saí do cinema e pus-me a caminhar a pé pela avenida meditando sobre o que tinha acontecido. Não, não fora alguém inconveniente. Alguém que passados muitos anos viu projetados na tela seus sonhos e esperanças de um tempo em que era jovem e mostrava todo o amor que lhe atravessava o espírito. Um amor tocado pelos olhos convidativos de Audrey que subitamente acendia a velha paixão adormecida de volta.
Talvez houvesse lembrado daquela festa numa tarde de Sábado em que encantado dançou Moon River com a garota de seus sonhos. O tampo de colegial devia estar tão longe e adormecido junto com cada acorde da canção. Quantas coisas não teriam passado pela sua mente.  
Tocado pelo encanto ele não pensou no que estava fazendo porque o amor vive mais do que os filmes. Pode mostrar que tudo permanece como antes debaixo de outras aparências. Quando o fascínio irresistível da estrela, que não precisou mostrar um centímetro de sua sensualidade para que Peppard se apaixonasse, chegou até ele já não havia como escapar da armadilha do destino. Lembrou que era um homem capaz de amar.
Não censurarei o teu gesto, a tua oferta espontânea desconhecido, ocorrida num momento tão especial de teu dia. Ela afinal de contas não tinha o nariz perfeito, os olhos interrogativos e o rosto insuportavelmente expressivo de Audrey. Nós é que somos os transformadores da realidade no sonho. O sonho somos nós.
Quantas recordações você deve ter despertado Audrey, quantos amores acendido, quantos olhares recordados, quantos beijos que não foram dados ou dados quando Moon River chegou nos ouvidos das pessoas, quanta coisa não foi vivida ou desejada ser vivida como a figura elegante e encantadora da garota refletida na vitrine da Tiffany´s. Não se importe com isso. Você é a irresistível Audrey no final das contas.  


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